Meios Dias

Sunday, October 15, 2006

Desapego

As duas escovas de dente resumem bem os últimos meses. A rosa quer dizer "sim, a esperança resiste"; a roxa, "vem pra casa assistir a um filme que a gente com certeza não vai assistir hoje".
Mas não quero mais nenhuma. Prefiro a minha, azul, de cerdas espalhadas, que preciso trocar e lembro todo dia ao sair de casa e esqueço ao passar pela farmácia, entretido com o horário ou com outro jogo mental que não canso de fazer.
Porque eu penso, penso, penso, penso (e esse recurso de repetir palavras para parecer rock'n'roll eu já usei no texto abaixo, sem sucesso) e nada sai da minha cabeça. A minha memória serve para me confundir e torturar. Tal qual um arquivo morto e ruim.
E objetos, escovas sem uso que apenas juntam poeira em cima da pia, são parte da memória ruim. Defendê-las sobre a pia é defender a auto-tortura e a sabotagem interna que tanta gente, terapeutas ou não, insiste para dispensar da vida. Pois essa solidão a qual me reservo agora é para tratar melhor dos meus dentes, enquanto ninguém mais liga ou tem interesse em deixar seu porta-cerdas sobre qualquer item de mármore que eu tenha no meu apartamento.

My little empire

"I'm happy being sad." James Dean Bradfield, manso, encerra assim a canção mais bela de "This is My Truth, Tell me Yours", maior sucesso e, ao mesmo tempo, maior fracasso do Manic Street Preachers _vendeu mais que nenhum outro mas foi o menos Manics de seus sete discos até aqui.
Na piscina percebi que a felicidade vem de não ser feliz, de estar à toa, sozinho, de peito vazio. Não dei conta de que o feito, de o amontoado de coisas que virou este ano, pode não ser nada, nada, nada, nada (a repetição é por querer que este texto soe como música mesmo sem ser).
Sou feliz com uma caixa de CDs, rindo sozinho. Ou voltando a pé de um lugar qualquer. Ou com a caixa de discos que acabei baixando de sono mal-dormido _e o computador funcionando sozinho, à caça do que eu não tenho. Pensou se fosse assim, o computador buscando as palavras que não tenho para comentar aqui? Eu seria como o personagem principal do último livro de Jonathan Safran Foer, o melhor escritor destes tristes anos zero zero que não começam nem acabam. Eu estou aqui gastando o meu tempo, tal qual outro personagem, desta vez os da série "Seinfeld", aquela que descorre sobre o nada. Pois é assim meu texto, é sobre o nada, o vento que não passa, não soa, o calor que passo aqui neste quarto amplo e fechado que alguém diz que é redação. Mas eu sou feliz sendo sozinho, triste ou vazio. É uma felicidade estranha, mas eu juro que ela existe.

Sunday, August 20, 2006

Impressoes

Bom, esta eh a terceira parada desde que comecei a rodar o Velho Continente. Amanha faco a quarta e penultima. Poderia ser a quinta _por conta de nove horas parado em Portugal.
Mas a questao nao eh jurar que pais eh melhor ou pior. Entre uma fronteira e outra, as diferencas vao alem do clima. Eu juro que nao sabia o quanto esta Berlim era cosmopolita, mais do que Londres. A capital britanica, meu chapa, eh mais terra de ninguem do que cidade.
Berlim respira dois mundos, e isso todo mundo sabe. As separacoes entre os lados oriental e ocidental sao evidentes, com o ultimo tentando contar a historia do jeito dele _ela esta no checkpoint Charlie, no museu da DDR, na ridicularizacao macica do lado oriental. Vale o esforco, no entanto, para sacar o que sao as duas cidades, como fica a historia para cada parte dela _por exemplo, o lado ocidental faz esforco para lembrar que a potencia olimpica oriental nada mais era que um povo anabolizado por trunfos que os legitimassem politicamente. Foi mais que isso.
E aqui, meu filho, o povo nao liga. Bem menos ate do que a Inglaterra ditadora de tendencias e modas etc. Ok, eles aqui ainda gostam dos 80 _vem falar mal do Depeche Mode para ver.
Mas o alemao eh o gente boa que vem perguntar se eu sei direito o que estou fazendo olhando fixo para o quadro de estacoes do metro. Ou aquele que empurra minha mala quando ve que o peso eh maior do que eu consigo carregar ou faz sinal para apontar a linha de dois jogadores livres no lado esquerdo do campo no estadio. O alemao eh aquele que fecha a Paulista de Berlim as 6h da tarde de uma sexta para montar um circo-parquinho. Eles curtem a vida adoidado.
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Ja Paris eh impessoal demais. Parisienses voce encontra nos onibus, senao vc nao os encontra. A cidade eh tomada por imigrantes, o que a deixa mais com a cara de toda a Africa reunida em uma so cidade europeia. A Franca paga com os imigrantes o preco da politica colonial no seculo 19, com gente do norte (Argelia, Marrocos, Tunisia) a Africa Equatorial (Senegal, Camaroes).
Assim, mais do que a torre Eiffel, o Louvre, o Arco do Triunfo, o bom de ver em Paris eh a mistura de trajes arabes e negros, todos eles bem fieis a origem, cultuano linguas e tradicoes.
Como bem disse Thuram, o capitao daquela selecao que mais empolgou na Copa 2006, aquele time que jogou na Alemanha nao representava os negros, nem os arabes, nem mesmo aqueles que juram ter o sangue frances que o direitista Jean Marie Le Pen tanto procura. Aquele time, assim como aquela gente que vc na rua ou nas liquidacoes, eh o que Franca combinou de ser o seu povo, algo muito mais libertario do que qualquer revolucao faria supor 220 anos atras.
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E a Espanha eh a Bahia da Europa. Ora, nao eh nenhum julgamento embutido em preconceito nestas linhas. Na Espanha faz calor e todo mundo, no Brasil ou na Inglaterra, quer ir lah um dia morar. E o espanhol eh muito senhor dele, e so dele. Nao faz questao de se importar com o que acontece do lado de fora daquele quadrado solto entre o mar Mediterraneo e o oceano Atlantico.
Mas, bem, esta foi a impressao de Madrid. Nas ruas nao vi sinal de dores com o franquismo. Vi gente feliz, alegre, pronta para sair a noite conhecer o seu novo par. O individualismo faz parte do jeito de ser do espanhol. Foi assim que ele desenvolveu sua cidadania; eh assim que ele ve seus maiores simbolos, seus pintores e escritores. Como a Bahia: um lugar que vai crescendo a sombra de seus mestres Amados, Caetanos e por ai afora. Da ate para tirar um cochilo a tarde.

Tuesday, August 08, 2006

Falando de arte

Ora, o conceito. Tem gente que rasga tanta regra só para nao segui-lo quando o mais fácil, sabe-se, é brincar de o seguir. "Joga o jogo", alguém disse num bar qualquer um dia aí. O cinismo nem sempre é jogar o jogo. É fazer leis, e esperto de quem se ligar e rir _porque dele só se pode rir.
Hoje, quarto dia de viagem, de férias e os pés e coxas em bolhas em Madri, vi Velasquez e pude me impressionar e quase chorar com o que ele tinha nas maos. Velasquez viveu toda a vida à custa do império espanhol. Retratou seus reis e princípes e conseguiu deixá-los sem expressao, quando pintava as párias do castelo com o que faltava à nobreza. Disso sobrou o anao de fraco desempenho mental com a ternura que poucos compartilham àquele tempo; a elegância de um barbeiro do papa como o único registro de uma viagem ao Vaticano; a seriedade sóbria daqueles que divertiam reis e corte. Velasquez sabia que ninguém poderia acusá-los dessas visoes. Pintou com os olhos de quem é direto em suas opinioes; nao foi explícito: deixou para os olhos de quem vê seus quadros o tom da concordância ou da maldiçao.
Tao nobre quanto Picasso, instalado nos dois grandes museus da cidade, o Prado e o Reina Sofia. A ocasiao é a nobre chegado, há 20 anos, da Guernica à terra que a inspirou.
Picasso fez sua principal criaçao com a crítica política. E da crítica artística expressou em seus últimos quadros, com recriaçoes daqueles que foram suas maiores escolas.
Ele foi polêmica, mas deixou de guiar uma viagem dentro de si quando chegou à velhice. Preferiu dar cor às suas visoes, e aí está o seu legado.
Picasso, como Velasques, recorre ao conceito para fomentar a unidade de uma obra. Ela nao está no estilo das pinceladas (as 40 mutaçoes de Picasso ao longo da carreira estao aí para provar que nao era no traço que o seu estilo residiu), mas no modo como cada um, a seu tempo, enxergou a arte e o perfil de quem estava ao seu redor.

Monday, August 07, 2006

Dias pela metade

É o costume dos dias iniciados ao meio. O sono vai até o meio-dia, quando desperto, jogo longe o cobertor e tento descobrir se faz sol ou chuva. A cortina cai. Levanto, arrumo o que resta de meus pregos na parede e tento recolocá-la, para, dali em diante, levantá-la e ver a luz entrar.
Mas pára: aqui os dias começam cedo, antes de o céu clarear aí. Eles passam da metade, deixam o sol no ar por 17, 18 horas. Quando é meio-dia ligo para a mae, para dizer como estou.
E eu estou. Bem, cansado, queimado. Com a cabeça frita mas nao pelo que me preocupa. É o sol madrilheno, lançado sobre os poucos fios que ainda restam nesta cabeça sem couro. Tenho 30 anos, com um sonho passado e o sangue um pouco pisado, mas resta um coraçao. Ele bate, nao sei a que horas, nao sei o que eu digo agora. É só o coraçao. Sou quase uma música do Fagner, mas ainda creio que dá para ser feliz. Vou tirar a camisa e sair por aí.